Pular para o conteúdo principal

Como D&D um dia me fez ver o mundo meio torto



2001, terceira edição a mil, tradução da Devir, aquele livro lindo com uma aparência de grimório, umas artes com cara de rascunhos do Da Vinci no início dos capítulos, as belas artes de Lockwood e Wayne Reynolds, aquele monte de bônus e mecânicas que não tinha na 2e, enfim, não esqueço meu fascínio quando abri meu Livro do Jogador da terceira edição pela primeira vez.

Lembro dos meus primos geração xerox apontando um defeito atrás do outro, reclamando de uma pá de coisas - e talvez eles até tinham algum fundamento em meio a todo aquele conservadorismo que permeava a raiva deles com a nova edição do D&D. Mais tarde eles de fato se provariam certos (ao menos pra mim).

E a terceira edição tinha daquilo né, quando saíram os livros básicos havia monstros com bônus de Testes de Resistência tão altos que me parecia irrealista um personagem, mesmo com vinte níveis, conseguir impor certas magias ou efeitos sobre as eles. Não tinha como o Tarrasque falhar num TR de Constituição em condições normais (ainda continua improvável), a AC dele era absolutamente intransponível e  muito dificilmente um soldado iniciante conseguiria penetrar a pele duríssima dele.

Os mesmos valores bestiais valiam para criaturas como dragões vermelhos anciões e semelhantes. A terceira edição tinha uma granularidade engraçada, uns bônus +43, sendo que nesse ponto pouco importava ser +40 ou +43, a ordem de grandeza que era relevante. Tinha as vezes uma granularidade meio inútil mas que agradava uns colecionadores de preciosismos: era legal ver que o Manshoon tinha +12 em "Usar Cordas" -mesmo que isso servisse pra absolutamente nada- porque num romance de bolso de um escritor B na década de 80 havia uma página específica com o Manshoon manejando cordas. As vezes a ficha dos NPC's era quase um "aí bora botar um pouco de cada coisa que ele fez na lore", e ficava uma balbúrdia de multiclasses e perícias que serviam apenas para espelhar um ou outro feito desses NPC's nos livros. Isso era até num certo aspecto legal e eu entendo que tenha gente que sinta falta de ver uma ficha de um NPC com trocentos mil níveis e peripécias (hoje acho isso mais aparência e gratificação do que praticidade na mesa, muito crunch obsoleto).

Essa pegada de haver uma régua numérica pra cada capacidade me pegou de jeito nos anos 2000. Vi Troia e saí do cinema debatendo com meus amigos o nível do Aquiles e os supostos atributos dele. Li o Silmarillion e debatia com os mesmos amigos qual era a ficha do Feanor, batia boca sobre como as lâminas curtas de 1d6 de dano do Legolas podiam causar tanto estrago no filme de Senhor dos Anéis. Tudo tinha uma análise baseado na regra do sistema vigente.

Reflita: "batíamos boca sobre como as lâminas curtas de 1d6 de dano do Legolas podiam causar tanto estrago".

Como se D&D fosse o Santo Graal da verdade e da realidade.

Bicho, eu achava que era só eu, aí em 2013, não sei ao certo, enfim, quando saiu o filme do Hobbit; lembro de um cara puto porque a flecha que matou o Smaug não causaria dano suficiente para matar um dragão. Mesmo com um crítico, um sneak altíssimo, bônus mágicos, modificadores loucos, não seria possível comer os prováveis mais de 700 Pontos de Vida do Smaug. Logo a cena era tosca.

Me lembrei de ter reagido de forma semelhante quando Turin mata Glaurung no Silmarillion, o cara com uma espadada mata o pai dos dragões. Fiquei pensando no dano que a espada escura e o Turin conseguiriam dar com aquele golpe, e, pensando que não seria um número alto o suficiente, deduzi que a cena era irrealista.

D&D virou uma espécie de régua de realidade. Se não fosse possível replicar uma cena no D&D, a cena era tosca e mal pensada.

E não era só eu e o cara do Hobbit que já achamos isso. Se você jogasse isso num fórum da internet haveria quem fizesse um malabarismo de bônus e modificadores para embasar o feito de Turin contra Glaurung. 'É porque a espada é mágica e tem o efeito tal...", "É porque a criatura sofreu pequenos danos ao longo do percurso...", tinha de tudo.

Eu não sei ao certo que dia que virei a chave pra isso. Mas um dia aconteceu, eu simplesmente pensei: quem é D&D na fila do pão? Se o Tolkien diz que com um fucking golpe o Turin matou o Glaurung, beleza! O cara enfiou uma espada de 1m pra mais no coração do bicho, deve matar mermo. E mesmo se fosse anatomicamente estranho, que se dane, é um dragão po (e não afeta tanto a minha "suspensão de descrença" você lanhar o coração do bicho), a espada é mágica, sei lá.

O debate da suspensão de descrença é importante e não cabe a esse texto, mas de fato não ligamos muito de um mago voar com magia (mesmo magia não existindo), mas não gostamos de ver dragões morrendo com uma flecha pequena, porque a flecha não fere o dragão tão fundo (faz sentido). Mas e se a flecha for mágica? O meu Eu que usava D&D como pedra da verdade diria: "Não pode porque o Teste de Resistência é facilmente superado pelo dragão". Que merda.

Eu acho D&D um dos melhores sistemas, o combate da 5e é provavelmente o que mais gosto dentre todos os sistemas que já joguei. Mas eu já desapeguei da ideia de que D&D simula qualquer coisa. Ao menos na 5e eles admitiram e largaram mão de tentar parecer que simula. A 5e trabalha no limite da abstração gamista: existem muitos números e variáveis, mas nada é literal. Pontos de vida não são "o quanto o personagem consegue ser ferido",  ferimentos sérios só ocorrem quando os pontos de vida zeram, até lá são esquivas, arranhões, raspões e todo tipo de evasão.

É impressionante como tem gente que ficou bolada com esse aspecto da 5e. D&D é um sistema que se você achar alguém dormindo e enfiar uma adaga lentamente no olho da pessoa até chegar na têmpora, se a pessoa tiver PV's suficientes ela sobrevive.

Aliás, hoje me parece irônico, D&D tem muitos paradoxos e irrealismos e mesmo assim eu insistia em usá-lo como régua da realidade.

Lembro do Salvatore falando que achava inútil fazer uma ficha do Drizzt na 5e, já que nos olhos dele a narrativa era mais importante que a ficha. Ele não estava falando que a narrativa deve ser mais importante que as mecânicas no seu jogo, ele tava falando do que rolou no livro que ele escreveu. O Drizzt não precisa dar vários mini cortes num inimigo para finaliza-lo, basta uma espadada (aquela de 1d6) na barriga. E não me venha com "ah, mas ele gastou as esquivas do inimigo e isso foram os pontos de vida", não, apenas pare. O autor não precisa escrever cenas como se elas ocoressem mecanicamente no D&D. Imagina a Weiss mandando um "Caaramon usa Second Wind e se sente melhor, então golpeia uma vez causando um dano médio no orc, em seguida ele, numa súbita potência, golpeia novamente com seu Action Surg..." pelo amor, não faça isso. Mecânicas são legais e importantes, mas não servem para descrever toda e qualquer narrativa.

Coisa semelhante vale para tendência: pouquíssimos personagens de filmes e livros podem ser replicados apenas com as tendências do D&D. Tem nada mais vazio que debater se a Cersei é Leal e Má ou Caótica e má. Isso é tão sem sentido quanto debater quantos anjos cabem na ponta de um alfinete. Você pode até se divertir gastando saliva nisso, mas não estará alcançando verdade alguma com isso.

Enfim, essa abertura de mente é legal até para a própria imersão no jogo. Não é que você liga menos pras mecânicas, ou prioriza a narrativa, nada disso, eu inclusive passei a ser mais aderente ainda as mecânicas (passei até a jogar sem escudo de mestre) e deixo o pau quebrar. Me sinto mais leve e descompromissado com modelagem, deixo o jogo ser jogo.

Afinal, as regras do D&D, assim como nossa imaginação, são infinitamente mais pobres que a realidade.

Comentários

  1. Vim pelo Café com Dungeon, no D&D 3.5 tem uma regra que se um personagem tirar três 20 seguidos (na hora de confirmar o crítico) no ataque ele mata com um golpe, não importa o Alvo, pronto tá resolvido :D

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu lembro!! Hahaha! Era opcional né?

      Excluir
    2. Não são três 20 seguidos . São dois 20 com a confirmação do decisivo no terceiro rolamento.

      Excluir
  2. Verdades.....so vejo verdades.... Ja debatida muito com amigos q acham q bárbaros nao podem usar armadura....enquanto q vikings e Conan usavam. Parem de usar dnd como a verdade sobre toda a fantasia!!!!!

    Em tempo: sobre abstração do HP na 5ed, isso nao eh novidade, alias, sempre foi assim! A galera q nao lia o livro mesmo

    Referencia: http://guildadosmestres.com.br/2019/01/24/pontos-de-vida-nao-sao-barra-de-vida-de-videogame/

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Você não vai chegar no nível 20 e o que o design do jogo tem a ver com isso

Você já deve ter buscado formas de otimizar seu personagem, já deve ter perguntado se vale mais a pena o talento x ou o talento y. Quem nunca? É justo saber se aquela ideia de um guerreiro com duas espadas é viável, ou se vale ter umas perícias a mais. A internet, munida de um exército de analistas de builds e theory-crafters, obviamente mapeou e norteou o que há de bom e o que há de ruim no PHB e demais suplementos. Porém, após anos observando algumas opiniões e pareceres, comecei a questionar certos dogmas. Por exemplo, vamos ao monge. O monge enfia o cacete nos primeiros níveis, mas progressivamente perde força nos níveis mais altos. O ranger faz a mesma coisa, com o Hunter’s Mark ou Hail of Thornes ele se mostra um poderoso combatente além de inúmeras habilidades fora do combate (algumas até boas demais para o bem andar de uma campanha). “O monge é desbalanceado, fica aquém nos níveis mais altos”. Reconhecemos que é verdade, mas é provável que você nem t

Por que a Bounded Accuracy tornou a 5e mais ampla

“Como assim? Como um sistema com um espectro tão estreito pode tornar-se mais amplo? Isso é um absurdo!” É essa a percepção que eu tinha quando me deparei com os livros da 5e. Acostumado com o empilhamento de modificadores (principalmente da 3.x/PF), a possibilidade de ter no máximo um +11 [1] para acertar no 20º nível me pareceu frustrante. Isso abria a seguinte premissa: “poderia um incapaz acertar um semideus, mesmo que causando um dano irrelevante?”; na 5e a resposta é sim.  Os valores altos de CA não atingem mais que duas dezenas, a dificuldade dos testes não passa muito disso também, a granularidade numérica parece infinitamente menor... E como isso implica em mais possibilidades? Não seria um contrassenso? Essa pergunta pode ser respondida de duas formas, uma, a mais subjetiva, eu respondi no meu post "Como D&D um dia me fez ver o mundo meio torto"  (aqui abro literalmente um parêntese porque o argumento vai mais na percepção

Roube Essa Ideia O quanto Antes