Uma campanha nova vai começar e o DM sugere que o ponto de
partida será em Waterdeep.
Vamos então fazer um personagem pra essa campanha. Que tal
um guerreiro? Sim, ótimo! Aliás, queria algo mais heroico, um paladino! Isso um
paladino.
Raça, hmmmm, vejamos, qual raça... draconatos são meio
estranhos, mas quem sabe. Um draconato paladino de Bahamut me soa clichê, mas ao
mesmo tempo me parece divertido! Isso! Serei um paladino draconato que segue
Bahamut e fez o juramento da vingança! Um verdadeiro exemplo de justiça, um
defensor do bem maior que entrará em qualquer cruzada para que o mal não prevaleça!
Isso!
Seu nome será Hador, o sobrenome depois eu coloco. Ele será extremamente
justo, mas ao mesmo tempo teimoso. Será forte, porém lento. E por último ele
será piedoso com todos, menos com ele mesmo. Pronto, essas sãos as três
características que tentarei assimilar para interpretar esse bravo paladino, os
detalhes de como eu fui parar em Waterdeep eu vou juntando como um quebra cabeça
durante a campanha.
Partindo disso eu montei, junto ao DM a ficha do Hador.
Usamos Point Buy. Me esforcei ao máximo pra que suas proficiências e atributos
dialogassem o melhor possível com a minha ideia de personagem, ao mesmo tempo
queria que ele fosse eficiente. Afinal quero interpretar um herói, e herói morto
não interpreta.
Hador tem 16 de Força. Tá ali escrito na ficha dele. Mas
Hador não sabe disso. No mundo em que Hador existe ele não comparece a uma fila
onde examinam suas habilidades e entregam um formulário dizendo “Senhor, parabéns, você levantou tantos kg e
sua força foi avaliada em 16”.
Hador tem proficiências e habilidades diversas, ele nada
muito bem, tem uma grande explosão muscular, mas obviamente ele não sabe que
tem +5 em Athletics. Ele sabe menos ainda que um dado de vinte lados foi rolado
num multiverso paralelo e que seu bônus de Athletics foi somado ao resultado desse
dado, e isso culminou no salto fenomenal que ele fez durante uma perseguição de
bandidos em Waterdeep.
"Ele sabe menos ainda que um dado de vinte lados foi rolado num multiverso paralelo e que seu bônus de Athletics foi somado ao resultado desse dado."
É bem divertido interpretar Hador. Eu vejo o Balder, o
ladino, fazendo suas peripécias e fico passando sermões sobre moralidade e contrato
social, sobre como seria bom se todos seguissem as regras da sociedade, etc. Tem
vezes que eu realmente estou na cabeça de Hador, quando fecho os olhos até
imagino suas mãozorras como se fossem as minhas, eu enxergo e sinto o mundo
como se fosse Hador. Nessas vezes eu sinto calafrios ao explorar masmorras -
mesmo Hador sendo valente e destemido- ver um pentagrama com corpos mutilados
numa sala absolutamente escura e com olhos malignos à espreita deixa qualquer
um arrepiado.
As vezes eu fico pensando que tenho cagaço de sair de casa a
noite, de quando policial me manda parar, enfim. Uma vez vi um cara apanhando
na rua e aquilo me deixou bolado por três dias. Aliás até hoje sou meio bolado.
Outro dia desses recebi um vídeo no whatsapp de um cara sendo assassinado. É
bem diferente de ver em um filme ou série né, a cena real com aquela câmera de
celular, aquela familiaridade terrena que nenhum diretor consegue passar. Deu
um ruim dentro de mim, o cara descarregou um pente no outro e aí pronto, acabou
a vida. Deletou a pessoa.
Aí eu volto pro Hador. Tu tem que ser muito embrutecido
mesmo pra ficar sussa na frente de gente desmembrada numa caverna escura e com
gente querendo te matar. E que experiência foda. Cada fio de armadilha, cada
espadada bem sucedida. Cada segundo a mais sobrevivido. E melhor ainda é ver a
cooperação com meus companheiros. Sobrevivemos à masmorra.
Mas nem todo dia estamos com cabeça pra entrar no
personagem. Sabe, as vezes tu tá cheio de coisa do trabalho (ou se for mais
novo da escola ou faculdade). As vezes tu brigou com alguém importante, as
vezes tu tá discutindo política no face, as vezes tu tá com um game novo que tu
não consegue parar de jogar. Hador está mais distante naquele dia. Eu
simplesmente não consegui entrar dentro das veias dele. Eu olho para uma ficha
de papel e vejo um boneco em terceira pessoa numa espécie de GTA medieval.
Assim como meu personagem de GTA não tem medo de bater um
carro a 160km/h, Hador está menos temerário também. Aquela nova masmorra não me
enregela. Os kobolds que já se renderam podem ser mortos, foda-se eles. Eu não
estou enxergando-os implorar pela vida tremendo, ao menos não hoje. Acontece.
É difícil manter esse nível de imersão full time.
Mas eu tento me policiar.
Por que eu juro que algo na minha alma (e nem em alma eu
acredito) fica mais jovem quando eu realmente estou de trás dos olhos de um
mago que conjura a nevasca sob os inimigos. Ou sou o investigador que
desmascara um culto genocida, ou sou o vampiro que odeia e ama a própria existência.
Ou dou umas boas risadas com colegas e amigos na mesa.
"A realidade é infinitamente mais rica que a nossa imaginação."
A realidade é infinitamente mais rica que a nossa imaginação.
Presenciar uma decapitação deve ser muito mais agoniante que rolar um 20 e
ouvir a descrição de seu DM. Voar de asa delta foi uma das coisas mais
alucinantes que já fiz, imagine voar no lombo de um dragão. O RPG consegue
trazer de forma sinestésica uma experiência bem boa, bem imersiva, mas eu
desconheço alguém que consiga se manter no máximo grau de concentração e
imersão o tempo todo.
A gente lê textos (tipo esse), vê vídeos, segue canais, ouve
podcasts, enfim, faz a porra toda para “elevar” nosso jogo, mas ainda assim é
um jogo. A gente não tá fazendo a oitava arte ao jogar RPG não.
Um dia eu estou dentro de Hador, vendo pelos olhos de Hador,
sentindo como Hador, outro dia eu estou olhando qual habilidade na ficha eu vou
tentar usar porque sei que aumenta minhas chances de ter sucesso. Esse ideal do
jogador, mestre ou jogo totalmente imersos é um santo graal que não rola. Na
minha experiência, e falando com as pessoas, eu notei que a imersão em geral
flutua durante uma campanha e durante uma sessão.
Existem coisas que demolem a imersão. Quando o DM mente um
dado de trás do escudo e você nota, e você SEMPRE nota, ele te perdeu. Eu me
afasto muito de dentro do Hador quando sei que aquilo tudo é nada daquilo.
Criar um mundo incoerente, onde algumas faltas de lógica
desafiam nossa “suspensão de descrença” também pode desafiar nossa imersão.
Mesmo num mundo com magia algumas coisas devem fazer um mínimo de sentido.
Existem algumas regras e se elas forem rompidas o personagem vira uma ficha de
papel imediatamente.
A colaboração do grupo é muito importante também. Quando
alguém faz uma ação disruptiva (e juro que ainda vou escrever um artigo longo
sobre isso), muitas vezes é o jogador e não o personagem que está agindo. E
covardemente o cara usa o escudo do “meu personagem faria isso” pra agir contra
o grupo. Ele esquece que por mais que o personagem dele seja sei-lá-o-quê, ele
também passou e sobreviveu perrengues cabulosíssimos com o grupo. Criou
vínculos e juras.
Mas essa parte o jogador esquece, o importante é que o
personagem dele é cleptomaníaco, doidão, não importa. O jogador delibera o que
bem entende ali sobre o personagem dele. A atitude fala mais do jogador do que
do personagem. Então quando seu personagem for cuzão, é bom tomar muito, mas
muito cuidado pra VOCÊ não estar sendo cuzão e não estar ferrando a imersão de
geral. Porque nem o jogo e nem o mundo são sobre você.
Então sabendo que a imersão é uma experiência tanto coletiva
quanto individual, vamos cooperar e se ajudar né.
Vale de tudo, faz a voz, complementa o DM se notar que ele
deu um branco criativo, inventa um negócio mesmo, sei lá a cor do avental do
taverneiro, imita o taverneiro, descreve uma ação deliberadamente ruim pro seu
personagem, acerte um golpe tão forte que você caiu no chão, crie você suas
falhas críticas*, enfim, tente somar. E claro, ao menos se tratando de D&D,
é sempre bom evitar de pedir pra ROLAR coisas. “Vou rolar um perception pra
saber se aqui tem tal coisa”. VSF. Se esforça marmanjo, fala ao menos que tu
foi ali e revirou as coisas de tal jeito. Pedir pra rolar é sacanagem. Pior
ainda é anunciar que vai rolar.
Lembra do Hador? Lembra que ele não sabia que existia um
dado no multiverso que é somado por um modificador regido por um atributo que
lhe foi atribuído numa ficha abstrata de suas capacidades? Hador jamais pediria
pra rolar um atributo. Quando você pede pra rolar você tá em terceira pessoa. Não
que você não esteja interpretando, mas certamente não é o máximo de imersão.
E DM, não se sinta mal quando a imersão não foi plena. A
responsabilidade não é inteiramente sua. Você é provavelmente o membro mais
ativo daquela mesa em questão, você é a terceira lei de Newton daquele
universo: a reação pra cada ação dos jogadores. Mas se lembre que o esforço da
imersão é individual e coletivo. Já vi DM’s absolutamente imersos lidando com
jogadores dispersos (mas raramente o contrário, estranho).
Eu descobri que minha diversão vem muito de estar por detrás
dos olhos dos meus personagens. Ou por ser realmente um espelho de um mundo
coerente, cruel ou fantástico, mas um espelho.
As vezes você se diverte espancando geral mesmo. Sendo o MVP
da mesa. Tanto faz. O cara que tem um canal de youtube não é melhor que você
porque ele dá dicas de rpg. Não tem regra pra diversão. As vezes eu acho que
quem posta coisas demais joga de menos (ou não, porque eu posto pra krl e tô
com mesa até demais ultimamente).
Sei que não dá para ser imerso e ter aquele jogo impecável e
conceitual full time. Mas seja persistente, você vai achar um grupo certo, você
vai conhecer pessoas que vão lhe ajudar a catalisar seu estilo de jogo e vai confirmar
aquilo que você já sabia: as pessoas são diferentes.
Inclusive esse texto não traz nenhuma novidade. Ele é só um
monte de ponderações irrelevantes sobre esse distanciamento do personagem que
todos nós sabemos que rola vez ou outra. Queria poder ser 100% Hador toda vez
que sento a mesa.
Mas as vezes a realidade tá pesando demais pra imaginação
alçar voo. Ou a imaginação tá voando demais para ficar presa ao Hador. É
difícil.
Seguimos evoluindo.
PS.: só não vale pedir pra rolar teste. Aí e demais.
*Falha crítica não é uma regra oficial. É uma house-rule
popular, mas em nenhuma edição foi uma regra oficial (no máximo opcional).
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