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O Bom Mestre



Esse texto serve de nada se você quiser mentir pra si mesmo afim de provar que algo aqui está errado.
Não é para testar sua capacidade ou seu mérito. 
É um exercício de reflexão que me foi muito libertador, até mesmo como pessoa.

O Bom Mestre



Todos nós já estivemos lá. Ao menos todas as pessoas que costumam jogar com o papel de Mestre, Narrador, DM, enfim, essa função que todos sabem do que se trata.

Sim, lá. Aquela cadeira central na távola redonda, como se tivéssemos um fardo enorme que nobremente carregávamos em prol da diversão coletiva. O mártir. O que se dedica. O que se entrega.

Ele.

O Bom Mestre.

 Do alto da sua pré-adolescência você curtia quadrinhos, lia Harry Potter, as vezes Senhor dos Anéis, um tico de Bernard Cornwell, um mangá ou outro, e todo tipo de cultura geek que você se esbarrava. Ou nem tanto, você consumia só parte disso. Ou metade. De toda forma você tinha um círculo de amigos pra falar disso e num belo dia um de vocês chegou com o tal de RPG.

Aquela Dragão Brasil no recreio. Aquele Livro do Jogador do primo mais velho. Você se emocionou quando folheou o Livro dos Monstros cheio de ilustrações incríveis dele. 3D&T foi o mais fácil de aprender, mas os caras mais velhos jogavam Vampiro, Mago e Lobisomem.

 Quando você se viu, sua missão era mestrar. Esse fardo lhe foi atribuído, e cabia a sua imaginação fértil e poderosa criar mundos e histórias para seus jogadores. Tudo havia de ser perfeito, cada assentamento, cada curva de rio, cada pedra. Você planejava acontecimentos e combates épicos inteligentemente estruturados e sequenciados para celebrar a epicidade magnânima dos feitos heroicos que os jogadores testemunhariam. 

A tarefa era árdua mas recompensadora, criar aqueles mundos e coisas todas não era tarefa fácil, e mais ainda, ter a sapiência de saber intervir quando necessário para o melhor “fluir” da história requeria jogo de cintura, uma mente afiada, criatividade, e todas as virtudes que um Bom Mestre deve ter. 

Ser um Bom Mestre é para poucos, e por isso sempre existirão menos Mestres que Jogadores. Todos podem jogar, mas apenas aqueles que se interessam pelo cuidado e zelo de criar e guiar uma história em prol da diversão dos outros são dignos dessa missão elevada e virtuosa. 

Sigam o Bom Mestre.

...

Narciso

Sobre a balela que você leu acima. 

Na filosofia existe a ideia de que não existe altruísmo puro. Somos todos egoístas que enxergamos o mundo por nossas janelas, mas ainda assim percebemos, sentimos, e concebemos em primeira pessoa. A mãe que dá o seio ao filho, o pai que jejua para dar ao filho o que comer, enfim, coloque aqui o mais nobre dos atos; no fim você o faz porque você não se tolera não o fazendo. Você não suportaria ver seu filho morrer de fome. É bonito, é tocante, mas no fim, é pra você.

Isso não quer dizer que devemos abrir mão de tudo que é compaixão e viver numa anarquia egoísta, até porque nós não queremos isso. Somos mamíferos e curtimos afeto, rir, socializar e todo resto. Mas é muito importante se atentar ao o que realmente fazemos e por que fazemos algumas coisas para os outros. 

Comecemos. 

O meu primeiro postulado aqui é que o papel de DM é um papel que se atribui muito a ideia de competência. O que é muito louco, já que RPG era pra ser um hobby colaborativo, social, não competitivo, e as coisas não precisariam ser levadas ao mérito de ofício. Isso acompanha a ideia de que RPG é um tipo de jogo desgarrado dos demais, uma estirpe mais elevada e preciosa de jogo, ou coisa do tipo. Tudo isso é questionável, e cabe debate, mas acho que todos concordam que existe a ideia da competência do DM. 

- E daí? Óbvio que existe a ideia de competência, você mesmo falou que era um jogo, e em vários jogos existe a ideia de competência e tá tudo bem, tem até campeonato, não é? 

É verdade, mas como avaliar um DM? Quais os quesitos já que ele não pode vencer um outro como numa partida de Smash Bros? Batalha de Rimas? Quem cria a Trova mais rápido? Atuação? Quiz de Forgotten Realms? Quiz de Edições e Sistemas? Quiz de Regras? 

Ironicamente a gente até vê essas competições por aí né. Basta ver como quando aparece alguma dúvida em um fórum e vem um comédia e escreve algo que ele acha que é a regra, mas por acaso ele se equivocou e é corrigido por outro colega de fórum.

Ali a Competência de DM dele foi ameaçada.

Ali vai começar um bate boca que muitas vezes termina com inconclusões e uso do “Escudo da Diversão”:

-Beleza, tá errado, mas o importante é se divertir e eu como DM mudo isso aí porque aí todos se divertem.
- Douglas, DM desde a Caixa da Grow, "aquela" da 1ª edição (HUE).

...Sim amigos, nosso hobby é majoritariamente composto por homens de masculinidade Beta que defenderão com todas as armas do mundo sua competência como geek. Como DM. O cara acima não tá essencialmente errado, ele pode fazer o que bem entender com o sistema dele, e se ele julgar que aquilo entra no conceito ultra subjetivo master que é diversão, e ele certifica que o mesmo conceito se espelha na mesa de jogadores dele, tá sussa. Basta que todos os planetas estejam alinhados, a lua esteja minguante, o vento sopre a oeste e três estrelas cadentes apareçam no céu.

A cena acima é só um exemplo corriqueiro da dinâmica que se vê em fóruns (que são certamente o principal canal de diálogo de RPG na atualidade), acontece muita coisa dahora, esses ambientes não são nem de longe uma feira das vaidades, mas acontece, vez ou outra, alguns rebuliços porque “a competência como DM” de alguém foi ameaçada.

Não me Digam Como Educar Meu Filho


Não me diga como Mestrar. Não me diga como me divertir. Não me diga como isso e aquilo.

Acho que ameaçar a “competência como DM” quase sempre vai levar a beligerâncias porque os mecanismos de defesa da pessoa tão muito próximos da fantasia que ela tem dela mesma. Eu queria que algum psicólogo me explicasse porque a galera fica tão ultrajada, tipo, de forma bem direta e como se eu tivesse 5 anos (e se alguém o fizer eu coloco aqui no texto e ainda ponho os louros da fonte – se quiser claro), quando se opina sobre “o jeito dela de Mestrar” (seja lá o que isso queira dizer).

Mas por que a sua forma de Mestrar é tão sagrada? A Polícia do RPG não vai bater na sua casa e tomar seu certificado de Bom DM não.

E será que não vale a pena ouvir e experimentar outras abordagens?

Será que aquelas verdades que foram criadas na sua mesa que vem desde 2003, no 3D&T, e que você joga com a mesma galera, na mesma caverna, ecoando ruídos e sendo validada por ela mesma, não podem ser arranhadas?

Aquilo que você fala como diversão pra sua mesa é de fato a diversão da sua mesa ou é a ficção de diversão que VOCÊ criou pra sua mesa? E que por estarem na mesma caverna que você, O Bom Mestre, Aquele Que Carrega O Fardo, seus jogadores não provaram do resto pra poderem atestar o contrário?

E quando atestam, você escuta?

Ou você acha que sabe o que é o melhor pra cada um?

Até que ponto a mesa é sobre o jogo emergente e compartilhado ou sobre o SEU jogo?

Então vamos lá:

Ninguém tá nem aí pra cosmologia, dinastia, geografia, mitologia, super estrutura, e todo o caralho que você fez pra conduzir sua campanha. Até porque é provável que ela seja um Frankenstein de tudo que há por aí.

Mas tá todo mundo aí pro NPC que conversa e tateia os personagens dos jogadores. Pra taverna que os jogadores pediram a descrição. Pra interação.

E isso não fui eu quem falei, o próprio Mike Shea constatouisso na sua extensa pesquisa qualitativa e quantitativa pra escrever o Lazy DungeonMaster: a parte mais significativa da percepção dos jogadores do mundo oferecido pelo DM se dá mais de baixo pra cima que de cima pra baixo.

E por que estou falando isso? Porque esse é um conceito que bate de frente com a ideia do “Bom DM” e da competência. É uma amarra difícil e pesada que muita gente teima em soltar e que talvez nunca soltará.

A ideia do DM virtuoso flerta com a ideia de uma masculinidade tóxica, de insegurança que leva a uma competição e egocentrismo no jeito de conduzir o jogo.

Não à toa fiquei tão surpreso na primeira vez que joguei com uma moça mestrando, uma leveza e uma tranquilidade que me transportou pros meus primeiros dias de RPG, como se cada sala nova fosse de fato um lugar novo. Uma desamarra das competições e necessidades de louros e méritos.

No fim, essa ideia do “Bom Mestre” faz é todo mundo sair perdendo.

Quer Dizer Que Devo Planejar Mais Nada? Foda-se Tudo?


Acho que não tem regra. Existem mil estratégias de condução de jogo, ter um fluxograma de eventos sempre será útil, e despreparo excessivo pode ser muito frustrante. A demanda por agência dos jogadores costuma flutuar numa sessão, então saber criar drama ou não pra dar corrente ao rio é importante. A própria prática ajuda nisso, mas tem vários podcasts e blogs que ajudam bem na empreitada.

Mas ainda assim, talvez o passo mais duro seja esse de não querer ter o controle de tudo.

Todos, sem exceção, que conheço e que comentam que viraram essa chave relatam como são mais felizes e como sentem mais leves em suas mesas.

E você pode sim continuar desenhando seus mapas, criando seu mundo, pensando em tramas e tudo mais, tá tudo bem. Ninguém tá proibido de criar, criar é a melhor parte do negócio. A única reflexão é sobre como você vai impor essa sua criação. Como ela vai chegar aos jogadores. Eu mesmo sou um criador compulsivo, desenho mapas isométricos de cidades inteiras e ainda invento nomes e comércios e o escambau (vide mapa abaixo).
Blingdenstone, Cidade dos Gnomos Cinzentos

Cada cabeça ali na mesa de jogo tem sua fantasia e identidade, uma criatividade aflorando. Usar dessa criatividade coletiva e emergente tira mil toneladas das costas do DM. Todo mundo sai ganhando.

O jogo é celebrado na mesa. Para a mesa. É sobre a mesa. Não sobre sua história.

Seguimos evoluindo.

E se algum dia tudo isso acima for abaixo, beleza, mudemos a abordagem. O objetivo não é estar certo.

É ser feliz.


.

Comentários

  1. Olá,

    Muito bom texto, Edu! CLAP! CLAP! CLAP!
    Compartilhando em 3... 2...

    Bonanças.

    Atenciosamente,
    Leishmaniose

    ResponderExcluir
  2. Sensacional..... Conteúdo muito maneiro e gostoso de ler, informativo e bem interessante

    ResponderExcluir
  3. MAs cOmO VoCÊ SE atReVE A dIZEr QuE eU TeNHo quE ACeTAr NovAS idEias
    ???

    ResponderExcluir

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