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Por que a Bounded Accuracy tornou a 5e mais ampla







“Como assim? Como um sistema com um espectro tão estreito pode tornar-se mais amplo? Isso é um absurdo!”

É essa a percepção que eu tinha quando me deparei com os livros da 5e. Acostumado com o empilhamento de modificadores (principalmente da 3.x/PF), a possibilidade de ter no máximo um +11[1] para acertar no 20º nível me pareceu frustrante. Isso abria a seguinte premissa: “poderia um incapaz acertar um semideus, mesmo que causando um dano irrelevante?”; na 5e a resposta é sim. Os valores altos de CA não atingem mais que duas dezenas, a dificuldade dos testes não passa muito disso também, a granularidade numérica parece infinitamente menor...

E como isso implica em mais possibilidades? Não seria um contrassenso?

Essa pergunta pode ser respondida de duas formas, uma, a mais subjetiva, eu respondi no meu post "Como D&D um dia me fez ver o mundo meio torto" (aqui abro literalmente um parêntese porque o argumento vai mais na percepção equivocada de um suposto realismo na modelagem do D&D). A segunda, de forma mais analítica, eu responderei, ou tentarei responder nas linhas abaixo.

Que caceta é Bounded Accuracy?


Vou tentar resumir. Vejo muita gente usando o termo Bounded Accuracy (vamos falar BA pra facilitar) para um monte de coisas da 5e que, apesar de beberem da mesma água que a BA, não estão no escopo da BA.

De forma grosseira a Bounded Accuracy é o nome que deram para a limitação do espectro numérico que descreve as chances de acertos em ataques das criaturas.

Resumindo: não rola mais de ter 65 de CA. Nem +55 para acertar. Todo mundo tá entre o 10 e o 30.
Muita gente acha que existe bounded accuracy para testes de habilidade, de resistência, ou perícias. Apesar dessas mecânicas lembrarem a BA, pois somam os mesmos modificadores, elas vieram a posteriori da ideia de limitar os números nas jogadas de ataque. Beleza, acaba que para os demais testes surtiram-se efeitos equivalentes, não há mais teste de resistência com valores enormes, tá tudo ali no máximo +11. Mas reitera-se, e os próprios autores do bagulho endossam, que o termo BA se refere, a priori, a jogadas de ataque (para acertar).

Dano não tem relação direta com Bounded Accuracy (é meio óbvio, mas é importante dizer).

Ok, e daí?


Pra entender como deixar a modelagem mais restrita a deixou o jogo mais amplo, primeiro vou repaginar a história das jogadas de ataque. Tentarei ser breve.

Bem no início, quando D&D era um Home Brew de uns jovens que curtiam uns wargames, as jogadas de ataque giravam em torno de umas tabelas de acerto. Era bem foda acertar e o jogo era lento e empacado.

Essas tabelas descreviam tentativas de acertar valores estáticos de defesa, e derivou-se dessas tabelas os termos de tentativa de acertar categoria 0, ou “to hit armor class 0”, que viraram a Thac0.

Quando AD&D saiu, muita gente fugiu dos livros porque a thac0 era apresentada numa fórmula e não em tabelas. Era uma fórmula só de soma e subtração, mas as pessoas parecem não ter gostado muito daquilo. Também havia uma pequena chatice no sistema da thac0, tudo no jogo tinha uma progressão positiva, menos a bendita thac0. Quanto menor sua AC e sua thac0, melhor. Estranhamente um roll alto era bom. É um conceito contra intuitivo e é compreensível que houvesse certa rejeição.

Apesar dos apesares, o range numérico da thac0 era de certa forma elegante, ao se colocar o pivô no 0 a modelagem não precisava tratar com números grandes.[2] Porém a progressão na thac0 que vinha ao subir níveis quebrava a utilidade dessa regra de acerto. Num dado ponto a rolagem de dados era praticamente inútil, você tinha certeza que iria acertar qualquer coisa. Com as expansões iniciava-se uma corrida por CA’s e thac0’s cada vez mais negativas. Essa corrida ditou a tônica das duas edições posteriores.

Há uma corrente[3] que credita as alterações nas edições posteriores à iniciativa da Wizards of the Coast de tornar o D&D um negócio mais lucrativo, independente de isso ser verdade ou não, a mecânica de acerto no jogo ficou ais intuitiva. Tudo subia na mesma direção, AC, a rolagem e o bônus para acertar. Essa mecânica de dado+modificador ser maior ou igual ao desafio se tornou a mecânica central do sistema.

Tal modelo parece bom, e na real é bom. Basta ver o sucesso que ainda faz até hoje.

Porém entra aqui uma coisa que se relaciona inclusive com meu post antigo.  A 3.x vinha com um amplo espectro numérico de bônus de acerto e CA’s que pareciam imputar um certo realismo, mas que na verdade criava o Efeito Esteira.

Efeito Esteira?


Treadmill Effect, como foi tratado pela comunidade nos fóruns. Isso vem do seguinte: a CA do monstro é associada ao desafio dele. Se você ganhasse níveis, as criaturas ganhavam mais CA. Até aí tudo bem. O problema é que a escala dessas edições era muito ampla para um dado de 20 lados, e subia rápido demais, tornando criaturas dos “níveis iniciais” absolutamente inutilizáveis.

E tudo bem, quanto mais forte você fica, mais fortes os monstros que você enfrenta, não é? Nessas edições um monstro mais forte só era acertável com um 20, e poderia muito bem linchar o grupo inteiro e sair ileso. Pro combate acontecer você tinha que ter a altura certa, não muito mais, não muito menos.

Tinha esse lado, que é bom e faz sentido, mas havia outros dois que eram problemáticos. 

Primeiramente isso forçava os designers a criar versões mais fortes de cada monstro para evitar que o monstro sumisse em certos níveis de jogo. Uma trupe de goblins era irrelevante contra um grupo de terceiro nível, se a campanha fosse sobre goblins era imperativo você jogar goblins “tunados” nos jogadores. O desafio do monstro era muito atrelado a capacidade de acerta-lo, monstros fortes tinham CA’s inatingíveis, enquanto monstros mais fracos apenas rolando 1 você os erraria. O desafio não estava centrado no dano, na resiliência e nos recursos do grupo, o pilar do desafio era o quão difícil era acertar o monstro. Quando você subia de nível, você rasgava páginas do Livro dos Monstros no seu jogo. Aqueles monstros não eram mais usáveis (de forma prática).

O segundo problema é que ao se colocar a progressão numérica equivalente a tudo, na real aqueles incrementos numéricos são pura fachada. Por que? Porque o jogo te força a enfrentar sempre o equivalente ao seu nível. Passou de nível e ganhou uns bônus? O monstro que você vai enfrentar será acrescido de bônus equivalente em desafio. A bola de fogo que obliteraria seus inimigos vai ser sempre lançada contra um inimigo parelho, você perde a chance de ver sua progressão aparente. A maré subirá igual para todos. Você não ficou mais forte, você nem saiu do lugar. Você tá correndo numa esteira.

 “Ah mas se eu enfrentar um kobold eu vou dar um pau nele, logo sou forte sim!”. Mas você vai mesmo enfrentar o kobold? Esse argumento é puramente retórico, na prática você só vai enfrentar aquilo que está no leque restrito do seu tier. Se você for de nível alto o kobold será uma versão super do kobold básico. O design do jogo revolvia em torno disso, e isso é tanto um dificultador quanto um limitador. Pra piorar, o dado perdia o sentido, com modificadores chegavam a 30, qual a relevância de se rolar um d20? O que importa não é o dado, mas sim o modificador.

No sistema d20, o d20 ficava irrelevante.

A quarta edição não eliminou o efeito esteira. Ela de certa forma o “codificou”, mas ainda estava lá.
Só na quinta edição que o “efeito esteira” entrou na lista negra das coisas a serem combatidas.

Prazer Bounded Accuracy!


De primeira mataram itens mágicos e os stack de bônus. A estrutura da CA ficou limitada a sua fórmula, sempre, não havia mais como acumular CA e todo o espectro do acerto voltava a tornar o d20 relevante.

O combate não gira mais em torno de uma maré que sobe igual para todos, criaturas fracas sempre oferecerão algum risco. Experimente colocar 10 kobolds a mais na sala do Boss, a coisa pega fogo. O kobold pode acertar o guerreiro de plate, ele pode feri-lo, ele vai incomodar. Ele ainda é usável. O mais mísero monstro do Monster Manual ainda tem utilidade, e isso é incrível!

A bounded accuracy tornou o combate até mesmo mais real porque um monstro passa a ser enfrentável não sob um exame de “consigo acertar ou não”, mas sim num exame de dano, efetividade, recursos, habilidades e resiliência.

Existem outros fatores ainda que a Bounded Accuracy parece ter melhorado (como a viabilização de personagens não tão otimizados, mas isso merece outro texto), porém a ideia central já foi exposta: a Bounded tornou o dado, o aleatório e o improvável sempre relevantes no jogo, ironicamente a diminuição do espectro numérico ampliou a possibilidade de criaturas e desafios! Menos números no jogo fez com que aspecto binário de desafio (enfrentável/não enfrentável) se tornasse um leque de possibilidades.

Existe coisa melhor do que um modelo enxuto e simples que consegue resultados bons e amplos? A 5e tem muitos aspectos que eu mudaria e eu de fato sempre taco uma ou outra house-rule no meu jogo. Mas na bounded accuracy a rapaziada acertou em cheio. Uma salva de palmas.


Referências


https://rpg.stackexchange.com/questions/44826/are-peoples-competencies-really-as-flat-in-dd-5e-as-its-math-suggests

https://olddungeonmaster.com/2014/08/30/bounded-accuracy/

https://www.dandwiki.com/wiki/Understanding_Bounded_Accuracy_(5e_Guideline)

https://www.reddit.com/r/DnD/comments/5gt8b4/what_is_the_whole_idea_behind_bounded_accuracy/


[1] Em condições normais há formas de superar tal limite, mas elas não descaracterizam o argumento.
[2] Número grande eu me refiro ao módulo, um número grande é analiticamente maior e requer implicâncias matemáticas mais trabalhosas ao design. Pode parecer estranho, mas trabalhar do -10 ao 10 pode ser melhor que do 0 ao 20.
[3] É importante ressaltar que corrente em RPG’s não tem um respaldo “acadêmico”, é tudo coisa de blogosfera e posts em fóruns

Comentários

  1. Muito legal mesmo, conseguiu dar uma visualizacao do porque que eu gosto do 5th mas nao sabia como definir.

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  2. Também tinha percebido isso, mas nunca entendia como explicar, a CA e as jogadas de ataque não variam muito, mas sim os danos, resistencias, recursos, estratégias... Muito bom o texto

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  3. Parabéns, meu caro. Muita gente publica textos, mas você sabe fazer isso. E traz uma reflexão bem crítica e pertinente. Até referência tem, rs.

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  4. Belo texto. Bons argumentos.
    " a possibilidade de ter no máximo um +11[1] para acertar no 20º nível me pareceu frustrante". No meu caso, eu gosto de jogar fantasia medieval pelo simples fato de ser uma fantasia. Falar: "- te mato só no bonus". É divertido.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Uma observação:
    "Os valores altos de CA não atingem mais que duas dezenas"

    Com uma FullPlate + escudo, você já tem CA 20, com talentos, itens mágicos, habilidades de classe, você facilmente chega próximo a 30 de CA (ou até mais se contar magias).

    Alem disso, meio que +11 é o menor bonus de ataque que você vai ter no nivel 20. Com itens mágicos, talentos, features de classe, você facilmente bate + de 20 na jogada de ataque. (e ainda tem seus 4 ataques por turno com guerreiro).

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    Respostas
    1. Ainda assim... compara com as antigas ca 55 ou os ataques +60... pra passar muito do 20 de CA ou do 15 de ataque, vc vai fazer um Build específico pra isso! e nem sempre se pode contar com item mágico em todas as campanhas...

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